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Entre o fogo e o tempo:

  • Foto do escritor: Enzo Martin
    Enzo Martin
  • 27 de out.
  • 3 min de leitura

o que a cozinha me ensinou sobre a vida

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Lembro do tempo em que trabalhava freneticamente na cozinha do meu primeiro restaurante — às vezes 12 ou 14 horas por dia, na frente dos fogões, bancadas e pias. Corta, corta e pica, pica… O trabalho é maçante, e na hora de servir, o cliente come tudo em menos de 20 minutos.


Buscar motivação para criar uma experiência gastronômica de qualidade sempre foi meu foco. Mas a busca por resultados e reconhecimento pode tirar o verdadeiro prazer do processo. É aquela meta para a qual você está se direcionando, mas é importante aproveitar o caminho, observar os detalhes.


Quando saí da minha primeira cozinha e fui ver o mundo, queria explorar novas tradições, novas formas de pensar o alimento e de me relacionar com ele. Encontrei, naturalmente, muito trabalho — afinal, isso faz parte da vida do cozinheiro e, de forma geral, de todo mundo.

Mas a cozinha ancestral me ensinou saberes que antes eu não havia compreendido. Existe uma relação espiritual do alimento com a comunidade, e quem cozinha faz parte de um organismo vivo que sustenta a sociedade. Não é apenas atender desejos e necessidades, mas fazer parte de um ciclo integral que mantém a harmonia entre os corpos e as pessoas.


A cozinha ancestral é sazonal, pois cada época tem sua fruta ou caça. Isso mantém o equilíbrio na floresta e na saúde. Os rios e lagos, a mata e o roçado têm tempo para se recuperar, o que fortalece seus sistemas naturalmente.

É engraçado como a farmácia hoje se gaba de ter aumentado a expectativa de vida, mas isso é realidade apenas para os colonizadores, que tinham uma expectativa muito baixa. A média entre os povos indígenas era altíssima. Eles ainda detêm grande força genética. A cozinha, o estilo de vida e o conhecimento sobre as plantas eram o verdadeiro remédio.


As crianças aprendem cedo a cozinhar e logo fazem sua parte no processo da cozinha e do cultivo. Homens e mulheres sabiam seus papéis no sustento da casa e da comunidade. Cada um tinha sua autonomia, mas sempre houve o conceito da partilha. Numa comunidade, ninguém está fora. Isso os fortalece.

A abundância é para todos — assim como a criação das crianças é dever de todos, não apenas dos pais.


A busca pela individuação era num campo mais artístico, espiritual e criativo. Hoje vivemos em bolhas que buscam sucesso individualmente, mas ainda se movimentam em massa, sem questionar se estamos indo na direção certa.

A cozinha é um local de troca de saberes, nutrientes fundamentais ao corpo, à mente e ao espírito. Ali cozinhamos as ideias dos nossos ancestrais e os ingredientes que mantêm o ciclo vivo.


Aprendi muito sobre a vida e sobre as aldeias dentro das cozinhas — conversando e trocando, especialmente com as mulheres, sobre alimentos, práticas e costumes.

Hoje carrego comigo essa sabedoria e respeito ao alimento. Tenho admiração pelos povos que sempre foram mestres na arte de manter a agrofloresta viva e de melhorar geneticamente os alimentos.


Percebo essa missão pacífica de ser ponte entre esses mundos — de ter ido para a raiz dos saberes e agora voltar às cidades para também atuar onde se precisa. Fazer meu papel nessa sociedade que busca, de alguma forma, conexão com o caminho que estamos percorrendo.

A vida passa rápido, afinal. E o propósito é aquilo que escolhemos fazer. A escolha é nosso maior poder — que, misturada às nossas palavras e atos, transforma realidades. Assim é com o alimento.


por: Enzo Martin Keayhu @chefenzomartin - Colunista Revista Bonapetit - Outubro 2025


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